segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

O músico brasileiro: esse desclassificado

O músico brasileiro: esse desclassificado

A falta de consciência do músico brasileiro é impressionante. O nível de alienação no que diz respeito não só ao seu papel social mas à sua própria condição profissional é simplesmente incomensurável. É difícil até começar a analisar a questão, tão impalpável é a sua condição. Explicar a um profissional de qualquer outra área, ainda que artística, sob quais condições se abriga o músico, é uma tarefa constrangedora. Não obstante, vamos a ela:
Para atuar profissionalmente requer-se de qualquer cidadão um certificado ou a filiação a um órgão que regulamente a profissão. No caso do músico exige-se a filiação à Ordem dos Músicos do Brasil, instituição cujos desmandos praticados ao longo de décadas são conhecidos pela grande maioria de seus associados, bem como as inúmeras denúncias e tentativas de desautorizá-la a exercer seu poder, poder este cristalizado por uma sucessão de abusos, corrupções, ameaças de morte e perseguição, eleições fraudulentas, entre outros crimes. A começar pelo exame de qualificação, que se assemelha a uma farsa cujo objetivo principal, já que outro benefício não há, é a apropriação do dinheiro pago pelo futuro profissional no ato do exame e nas sucessivas anuidades. Detalhes à parte, pois não é o objetivo dessa análise esmiuçar, mas apenas citar por quem o músico brasileiro se vê representado enquanto categoria, é importante assinalar que durante o tão afamado processo de democratização em nosso país, uma grande conquista se realizou, em parte através de ações isoladas de músicos do sul do Brasil que, requerendo judicialmente a não obrigatoriedade à filiação, apesar do inicial descrédito geral, obtiveram ganho de causa, e em parte por iniciativa de outros músicos que, já filiados à Ordem, conseguiram uma liminar que, vezes sim, vezes não, também os desobriga da apresentação.
Possuidor da Carteira da Ordem, tem então o músico autorização para tocar e receber. Receber o quê? - O Cachet, que teoricamente é estipulado pela OMB mas que de fato é uma fantasia raramente realizada, mesmo porque a citada entidade jamais intercede em nome do artista. No caso de contratos por tempo limitado em instituições sociais (SESC, por exemplo), a quantia é negociada diretamente entre o artista e a instituição, segundo critérios desconhecidos ou ausentes. Não falarei aquí de direitos autorais, pois a náusea se espalharia por todo o texto.
Mas o desconforto ainda pode se expandir ao considerarmos outro aspecto, o mais comum entre os profissionais poéticamente denominados “músicos da noite”. Essas figuras que participam ativamente da vida noturna das cidades e que alimentam uma das atividades mais lucrativas das metrópoles, a saber, a do entretenimento, sejam elas artistas profissionais (portadores da Carteira da Ordem) ou amadores, estão igualmente sujeitas a receberem um pagamento designado por outro termo, também francês: o Couvert artístico. Bien, esse, além de não ser obrigatório, é pago pelo cliente e não pela casa comercial, cujo dono assimilou e atualmente pratica, a ponto de ter se transformado em regra geral, o hábito de retirar de 30 a 50% desse valor para si. Inúmeros são também os casos em que o controle dessa quantia é mais um elemento de ficção. Esse realismo fantástico é mais contundente, a meu ver, quando a isto se agrega o fato de que tal circunstância é acatada pelos músicos enquanto norma (e normalidade) de sobrevivência.
Nem mesmo exceções que se revelam através da procura de soluções satisfatórias a ambos os lados (mesmo porque existem muito mais que dois lados nesta questão) o que nos importa é assinalar que quaisquer que sejam as alternativas, nenhuma delas atribui ao músico a condição de profissionalismo, eu diria, de dignidade profissional. Porque nenhum direito lhe é assegurado, por tributo ou imposto que reverta em aposentadoria ou coisa que o valha, pois o músico nesta condição não é contratado. Ele é, por assim dizer, um agregado.
Há pouco mais de um mês atrás o Jornal da Globo exibiu matéria referente aos 10% atribuídos aos garçons (curiosamente, mais um termo francês! ). E entre uma e outra alusão à instabilidade desse costume, porque também não obrigatório, a reportagem se caracterizava por um tom de indignação chegando até a citar o fato de que, em alguns países a gorjeta (creio que agora em italiano) é considerada humilhante e vergonhosa porque insinua a intenção de esmola (agora em português). Também foi denunciado que vários proprietários de restaurantes ficam com parte significativa dos 10%. Não me foi difícil a comparação, e vale dizer , a evidente desvantagem dos músicos, apesar da semelhança.
Concluindo: o músico paga para a OMB o direito de receber uma esmola que por sua vez, é dividida com o proprietário do estabelecimento e este, a qualquer momento pode dispensá-lo sem maiores ou menores compensações, já que não foi estabelecido qualquer tipo de contrato ou vínculo empregatício. E isso ocorre frequentemente. Não se trata de crucificar o comerciante, na verdade ele cumpre aqui muito mais o papel de Pilatos, lavando oportunamente suas mãos diante da incontestável sentença. E o papel do músico, bem, é o de entreter a clientela pelo maior tempo possível “tocando aquela” durante seis a oito horas por noite. Ao contrário do que se pensa, esta situação não se repete em países onde os sindicatos são organizados, vale dizer, onde a consciência política e de classe é condição de sobrevivência social. Mas no Brasil e similares, o artista se enclausurou na ilusão do exotismo, e dentro de seu casulo criativo sofre as consequências de uma alergia política, mais corretamente denominada: alienação.
É costume dizer que o músico não gosta de pensar, de falar, de questionar, pois a sua linguagem é outra, quase que superior, sensível (há uma comunidade no Orkur denominada: “Cala a boca e toca!”) Ora, a linguagem musical exige reflexão, acuidade, discernimento, crítica, escolha, disciplina, constante estudo e renovação. Falta ao músico consciência e prática política e ética. Acima de tudo falta-lhe coragem e iniciativa para transformar a sua condição de sub-empregado à espera de uma chance e de um prêmio que o mercado só lhe dará se ele adaptar sua arte ao formato de produto. Dois conceitos distintos e discutíveis.
A cada vez que há um salto tecnológico mais se encerram antigos meios de obtenção de renda.Todas as categorias profissionais questionam esse movimento que não traz junto de si apenas a expansão, mas também o retraimento. É necessário saber pensar, raciocinar, questionar, procurar soluções, comprender a função e posição do músico na sociedade, estudar não só música mas, ao menos, a história social da música. Garantir um mercado e não apenas “garantir o seu barzinho”, ou tentar garantir a liberdade de expor o público a diversos gêneros musicais, ao invés de impor um gosto exclusivo como verdade musical, prática esta amplamente difundida pela indústria fonográfica no auge de sua gula mercadológica.
Essa lamentável timidez, preguiçosa e lastimosa, em relação a lutar pelos direitos mais básicos de uma profissão é um atestado histórico de irresponsabilidade. O músico brasileiro ainda vive no Brasil colonial e pensa que a decifração de um código “sentido por muitos, mas comprendido por poucos”o qualifica como artista. A atitude consciente e crítica não impediu que grandes artistas brasileiros e estangeiros, eruditos, populares, cantores, compositores, instrumentistas nos dessem, em condições muito mais precárias, exemplos de dignidade e competência. E isso não prejudicou a qualidade de sua arte,muito pelo contrário.
Pode-se até virar músico na carteirinha. Mas para se qualificar como cidadão e artista, é preciso um pouco mais.