segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Canto Coral: Aquele garoto virou mestre

Em termos técnicos, não tenho muito a dizer sobre o Canto Coral. Genéricamente todo mundo sabe o que é um coral: A palavra Coral na acepção de grupo de cantores é comumente usada como sinônimo de Coro: um grupo de pessoas que se reúne para cantar sob a regência de um maestro pode ser denominado como tal. Aquí neste artigo, para nossos fins não me aventuro a definir o gênero, suas origens e desenvolvimento.

O termo Coral foi também históricamnte associado ao protestantismo cujos cantos litúrgicos elaborados por adeptos da igreja luterana, ao contrário do coro gregoriano monofônico católico que neste sentido propunha igualar os homens (mas não as mulheres) perante Deus, desenvolve o Coral enquanto forma musical escrita para várias vozes, ou se utiliza disso. Na verdade, a história é muito maior e tem origens e desenvolvimento vasto mas como não me considero autoridade no assunto, fico por aqui. Há até incrições rupestres que indicam o canto coletivo enquanto atividade, portanto, o caminho é longo.

O que me interessa neste momento é refletir um pouco sobre alguns outros aspectos dessa formação de conjunto musical e seu comportamento em S.Paulo.
Interessante notar que, por princípio, o Coral pressupõe um coletivo artístico envolvendo certa organização: naipes distintos para executar cada voz e um regente, é o básico. Há várias modalidades como coral infantil, feminino, etc. mas o Coral ao qual me refiro é aquele mais tradicionalmente conhecido: sopranos, contraltos, tenores e baixos, às vezes com barítonos e outras subdivisões.

O Coral passou a ser visto, eu diria mal visto, no Brasil dos últimos 20 anos. Não só mal visto como mal ouvido, mal cantado, mal dirigido e talvez isso tenha ocorrido na ordem exatamente inversa deste parágrafo.
Voltando ao aspecto coletivo da idéia não posso deixar de perceber que depois dos anos 60 e 70 muitos outros coletivos perderam sua característica em função do culto à personalidade, ao solista, ao protagonista, à individualidade a qualquer preço, ao auto-conhecimento, à auto-ajuda, ao autor, e fomos bombardeados com um arrasador desfile de egos. Em todos os campos. É claro que muito ganhamos através da manifestação de inúmeras personalidades individuais, mas muito mais perdemos em termos sociais, éticos e estéticos quando essas personalidades atribuem ao coletivo a função de simples expectador e consumidor do seu incrível talento.

Voltando ao Coral:

. há uma certa independência de vozes que, porém não têm sentido quando executadas isoladamente. Melhor dizendo: adquirem um sentido maior quando executadas no conjunto das vozes pois foram escritas para terem sentido no conjunto.

. qualquer pessoa pode cantar num coral. Não se requer daquele que canta nenhum tipo de virtuosismo, apenas princípios básicos da linguagem musical, perfeitamente passíveis de aprendizado e com resultado estético extremamente satisfatório quando bem orientado. A única coisa que se exige do integrante é que tenha voz. Óbviamente, quanto mais esse cantor se aprimorar, isso se refletirá no resultado final. O solista é solicitado para execução de determinadas peças e nesta função é necessária maior profundidade mas no conjunto, o próprio solista tem que fazer um enorme exercício na procura de adaptação ao timbre do naipe, ele não pode se destacar fora do momento certo, caso contrário "mata" a obra.

. não pense porém, o incauto, que esta qualquer pessoa irá cantarolar melodias fáceis, muito pelo contrário: o repertório exige o desenvolvimento da sensibilidade musical, técnica e estética. A boa notícia é que fica mais fácil e agradável em grupo. O grupo envolve outro tipo de relação também com a música.

. A figura do maestro ou regente, que em geral é também o diretor artístico, é fundamental e reconhecida enquanto responsável pela concepção artística da obra. No Brasil há uma confusão de têrmos que não sei se originária da língua ou do conceito mas como uma não anda sem o outro, vale a pena citar: Regente, Maestro, Diretor. Como são termos herdados, acabam se equivalendo, mas "no meio", percebe-se uma certa hierarquia quando se trata de distinguir o Maestro da Orquestra e o regente do coro, aqui em maíusculas e minúsculas propositalmente. Pura questão de preconceito cujas causas podem ser atribuídas ao próprio descaso e despreparo de alguns muitos que passaram a exercer esta função.

Durante os anos 60 e 70 participei de vários corais da cidade de S.Paulo e este foi um dado de extrema importância para o meu aprendizado musical. À existência de tantos grupos correspondia um aumento qualitativo tanto dos cantores quanto dos maestros.
Era muito comum participar, às 3ªs e 5ªs, de um Coral regido pelo Maestro Schnorremberg e às 4ªs e 6ªs de outro, com o Maestro Klaus-Dieter Wolff.
http://www.revista.brasil-europa.eu/116/1968-Vespro-Monteverdi.htm

E de quebra cantar no Madrigal da Pro Arte de S.Paulo e formar mais um outro com os Maestros iniciantes que precisavam de um Coral para seu aprendizado. Além de outras formações, como sextetos, octetos, criados para que pudéssemos ler peças ainda por nós desconhecidas ou contemporâneas.

Em outras palavras ocorria, por parte da juventude uma apropriação dessa cultura musical amplamente apoiada pelos então maestros que abriam esse caminho. Não existia internet, portanto as obras eram conseguidas através de cópias "xerox" de partituras colhidas por eles em seus estudos na Europa e na América do Sul, e que se espalhavam rápidamente entre os interessados: nós, os amadores, uma outra característica bastante importante a se salientar nessa formação. Aos muitos Concêrto sempre comparecia um grande público que lotava os teatros. Corais de outros países da América latina, como um coral do Chile de que agora me lembro com carinho, vinham somar e multiplicar esse entusiasmo.

Paulatinamente, isso foi se acabando. Coral virou qualquer coisa, menos o que realmente deveria ser. Assunto para outro "post". Cantar virou qualquer coisa. Com o tempo abandonei a área, mas ouvia falar de um ou de outro coral que seguia trabalhando mas ao mesmo tempo assumindo posturas bastante distanciadas deste clima.

No teatro, algo muito semelhante acontecia. Do ponto de vista musical, percebia uma enorme dificuldade dos atores para cantar e a interpretação desaparecia no momento em que começava o canto. Os próprios músicos de bandas pop passaram a não abrir mais a boca para cantar, só o vocalista.
Não posso deixar de dizer que durante minhas atividades junto ao teatro, já totalmente afastada do tenebroso cenário do canto coral que se instalou em S.Paulo, tive a felicidade de conhecer o Maestro William Guedes e seu excelente trabalho que me reacendeu a velha chama do "nem tudo está perdido", tanto nas poucas e gratificantes vezes que pude acompanhar, à flauta, o Coral que dirige, como nos diversos espetáculos sob sua direção musical, sempre recheados de arranjos vocais bem elaborados e executados. Parece que, tateando na escuridão deste cenário, o Maestro William Guedes encontrou um caminho, e dos bons.

Ainda na década de 60 um jovem amigo cantor e estudante de regência convidou alguns de seus amigos a formarem um pequeno coral para que ele pudesse praticar e dar continuidade aos seus estudos. Seu nome: Martinho Lutero, e nossa simpatia ao movimento antirracista nos EUA levou-nos a batizar o grupo de "Coral Luther King".
A média de idade deste grupo, incluindo o Maestro, era de 15 anos. Adolescentes de classe média e média-baixa, recém saídos da infância.
Passados 39 anos (em 2009) eu me reencontro com esse Maestro e seu Coral cantando nada mais que a Missa Luba! O Coral Luther King, que hoje compõe a Rede Cultural Luther King, é um raro exemplo de Coletivo que permaneceu durante 40 anos comprometido com a excelêcia não só musical mas de relacionamente entre seus integrantes.

http://www.lutherking.art.br/lutherking/

Imediatamente aderí ao grupo.

Vejo neste Coral os mesmos princípios que fizeram daquelas décadas a escola mais completa de aprendizado musical e de convívio em função da arte. A qualidade do trabalho desenvolvido por este Maestro e seu grupo vem sendo apreciada através dos Concertos que realiza e da escola de formação de novos cantores: Fábrica do som, que fundamenta e garante a continuidade do trabalho. Admirável o trabalho coordenado pelos integrantes da equipe artística que tive o prazer de conhecer. Entre eles,refletindo e transmitindo esse compromisso apaixonado, Sira Milani, excelente musicista e cantora, há mais de 15 anos trata de tudo e de todos com uma dedicação exemplar. E o que significa "atitude exemplar"? Simplesmente um comportamento que está em desuso: Comprometimento com uma idéia, seriedade, prazer e coragem para realizar aquilo em que acreditamos.

Dia 20 de fevereiro passado iniciamos uma série de Concêrtos para inaugurar um espaço e caracterizá-lo como sala destinada à concertos corais: o Anfiteatro do Auditório Ibirapuera.

Convidamos o Collegium Musicum, como um cumprimento a nossos irmãos mais velhos: eles têm 48 anos, enquanto nós, 40, para este primeiro concerto de uma série de dez, e esperávamos receber um tímido público levemente interessado no assunto. Para nossa surpresa compareceram mais de 500 pessoas que permaneceram em estado de tremenda atenção, aplaudindo entusiásticamente cada peça com alegria e receptividade.

Algo me diz que nem tudo o que se apronta na juventude deva ser negado na maturidade. Sempre acreditei que o adolescente é o sujeito mais comprometido com a verdade, ainda que nem sempre ela assim possa ser reconhecida. Não é à toa que sobre a juventude a sociedade exerce uma constante e ferrenha repressão, acabando por transformar idéias maravilhosas e ousadia em cartão de ponto e resignação.
Não é o caso do Maestro Martinho Lutero que converteu sua ousadia em sabedoria quando saiu a correr o mundo em busca de conhecimento e formação humanística e musical, mas garantiu o elo de transmissão desse conhecimento para as novas gerações do seu país de origem.

E então, aquele garoto virou Mestre.

Convido a todos a conhecerem um pouco sobre o trabalho desta Rêde:

http://www.lutherking.art.br/lutherking/

ref: http://www.revista.brasil-europa.eu/116/1968-Vespro-Monteverdi.htm

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010



Em 1974, no melhor estilo anos 70, peguei uma mochila, um cobertor xadrez e algumas roupas e fui, com mais duas amigas, da Estação da Luz para o Peru.
Trem da Morte, Bolívia e finalmente, Cusco. Na verdade este "finalmente" se deu 4 meses depois em Lima quando Pachamama, através de um terremoto de 6 graus, me avisou que já era hora de voltar.

Certa vez o maestro Paulo Herculano, sempre brilhante e provocativo, referiu-se a mim como: - a minha aluna hippie - qualificação por mim negada imediata e veementemente. Ele então argumentou: - Ora, alguém que tem Machu Picchu e Arembepe no currículo só pode ser um pouco hippie - Só me restou dar boas risadas.

Não temos a menor idéia de como irão nos qualificar daqui há 36 anos.O fato é que as classificações surgem depois, como referência histórica para melhor (ou pior) compreendermos uma época, um movimento ou comportamentos.
Em julho de 1974, nenhuma dessas idéias ocupava meus pensamentos. Não tínhamos nenhuma indicação ou plano de viagem, apenas o destino que poderia ser mudado, alongado até a Colômbia ou Galápagos, ou Amazônia.

Uma das amigas era Virgínia Fonseca. Essa é uma pequena homenagem que faço a ela.Ontem ela partiu pra muito, muito longe. Esta foto foi tirada em Lima,1974.Ela não largava do meu cobertor xadrez...Saudades.