quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Homem Cordial em ação!

Sem dúvida as raízes do Brasil são a base sólida de uma árvore que continua produzindo tantos frutos podres. Sob sua frondrosa sombra vicejam ervas daninhas e flores carnívoras. Para os leigos em biologia e botânica, como eu, um esclarecimento:

"A dieta das plantas popularmente chamadas carnívoras é bem variada. Elas comem organismos aquáticos microscópicos, moluscos (lesmas e caramujos), insetos, aranhas, centopéias e de vez em quando animais pequenos como sapos."(fonte: Google...rsrsrs)
Acabo de engolir um sapo!
Senão, vejamos:

Numa luta totalmente desproporcional e talvez sofrendo das mesmas alucinações de D. Quixote, cavaleiro a quem admiro e respeito, perguntei ao São SESC, divindade extremamente cultuada nessas terras de ninguém (ou de Alguém), porque motivo o SESC ainda continua exigindo a carteira da OMB para que os músicos possam usufruir do privilégio de tocar em suas unidades culturais. Modestamente, argumentei , ao menos em S. Paulo onde vigora a lei 12.457, ela deveria ser cumprida.

O SESC respondeu:

" Márcia: esclarecemos que a Lei Estadual somente isenta o músico da apresentação da carteira de inscrição na OMB durante a apresentação do espetáculo. Portanto, o SESC SP não solicita ao artista a apresentação da carteira da OMB durante o show e sim no momento da contratação. Obrigado"

Rárárárárá!!!!

Ou muito me engano, ou entendí que o músico tem que apresentar a carteira , mas só na hora de assinar o contrato? E não durante o show? Ora, se o show só ocorre depois da assinatura do contrato, me parece que o SESC está afirmando que exige, sim, a apresentação da malfadada carteira, que por sua vez é o objeto que prova que você pertence ou não a essa entidade(OMB)!

Em primeiro lugar, o SESC está mal informado. À lei de 2007 foi incorporado um artigo, em março de 2009, que desobriga também a filiação. Exatamente para eliminar esse tipo de resposta evasiva (tenho outras palavras, mas são piores do que esta) ao qual as entidades, sabe-se lá por qual motivo, que ignoro mas desconfio, recorrem com o intuito de apoiar a existência hegemônica e o poder arbitrário exercido pela OMB durante mais de 40 anos, com truculência, ameaças e perseguições típicas de regimes ditatoriais.
E mesmo se esse artigo não houvesse sido incorporado, qualquer pessoa de mediana inteligência percebe que está implícita na "não apresentação da carteira" a reinvidicação da inutilidade legal da mesma enquanto documento de comprovação profissional.

O Homem Cordial foi um termo sábiamente utilizado por Sérgio Buarque de Holanda em seu livro "Raízes do Brasil", considerado um dos mais importantes clássicos da historiografia, antropologia e sociologia brasileiras, para qualificar procedimentos dessa natureza. Tenho certeza que o sr. Danilo Santos de Miranda, sociólogo, diretor do Departamento Regional do SESC no Estado de São Paulo, a quem também admiro e respeito, conhece a obra.

Ao vincular a contratação do músico ao registro na OMB, o SESC, além de descumprir uma lei estadual, está ferindo um dos artigos da Constituição Brasileira de 1988 que garante o direito e a liberdade do cidadão em não ser constrangido a se filiar a qualquer tipo de entidade ou organização para o exercício de sua profissão, desde que não ofereça riscos e danos irreversíveis à coletividade. Não sou eu, em minha estropiada armadura quixotesca quem inventou essa frase, mas a Carta Magna da República Federativa do Brasil.

O que causa danos irreversíveis à coletividade é a insistência de entidades que se valem de um poder adquirido sobre a arrecadação de impostos públicos na decisão do que é lei ou não.

Também tenho certeza absoluta de que estou me oferecendo em holocausto ao comprar essa briga, pois "O Homem Cordial" não perdoa aqueles que o contestam. O SESC jamais me incluirá em suas programações, se um dia tiver conhecimento desse artigo.

Alguém duvida?

sábado, 1 de agosto de 2009

Adoniran Barbosa por Antonio Candido

Na contracapa do LP: "Adoniran Barbosa" (Odeon,1975; Dir. Musical de José Briamonte), encontrei este belo texto do mestre Antonio Candido, que transcrevo na íntegra:

" Adoniran Barbosa é um grande compositor e poeta popular, expressivo como poucos; mas não é Adoniran nem Barbosa, e sim João Rubinato, que adotou o nome de um amigo do Correio e o sobrenome de um compositor admirado. A idéia foi excelente, porque um artista inventa antes demais nada a sua própria personalidade; e porque, ao fazer isto, ele exprimiu a realidade tão paulista do italiano recoberto pela terra e do brasileiro das raízes européias. Adoniran é um paulista de cerne que exprime a sua terra com a força da imaginação alimentada pelas heranças necessárias de fora.

Já tenho lido que ele usa uma língua misturada de italiano e português. Não concordo. Da mistura, que é o sal da nossa terra, Adoniran colheu a flor e produziu uma obra radicalmente brasileira, em que as melhores cadências do samba e da canção, alimentadas inclusive pelo terreno fértil das Escolas, se alia com naturalidade às deformações normais de português brasileiro, onde Ernesto vira Arnesto, em cuja casa nós fumo e não encontremo ninguém, exatamente como por todo esse país. Em São Paulo, hoje, o italiano está na filigrana.

A fidelidade à música e à fala do povo permitiram a Adoniran exprimir a sua Cidade de modo completo e perfeito. São Paulo muda muito, e ninguém é capaz de dizer aonde irá. Mas a cidade que nossa geração conheceu (Adoniran é de 1910) foi a que se sobrepôs à velha cidadezinha caipira, entre 1900 e 1950; e que desde então vem cedendo lugar a uma outra, transformada em vasta aglomeração de gente vinda de toda parte. A nossa cidade, que substituiu a São Paulo estudantil e provinciana, foi a dos mestres-de-obra italianos e portugueses, dos arquitetos de inspiração neo-clássica, floral e neo-colonial, em camadas sucessivas. São Paulo dos palacetes franco-libaneses do Ipiranga, das vilas uniformes do Brás, das casas meio francesas de Higienópolis, da salada da Avenida Paulista. São Paulo da 25 de março dos sírios, da Caetano Pinto dos espanhóis, das Rapaziadas do Brás, na qual se apurou um novo modo cantante de falar português, como língua geral na convergência dos dialetos peninsulares e do baixo-contínuo vernáculo. Esta cidade que está acabando, que já acabou com a garoa, os bondes, o trem da Cantareira, o Triângulo, as Cantinas do Bexiga, Adoniran não a deixará acabar, porque graças a ele ela ficará, misturada vivamente com a nova mas, como o quarto do poeta, também "intacta, boiando no ar."

A sua poesia e a sua música são ao mesmo tempo brasileiras em geral e paulistanas em particular. Sobretudo quando entram (quase sempre discretamente) as indicações de lugar, para nos porem no Alto da Mooca, na Casa Verde, na Avenida São João, na 23 de Maio, no Brás genérico, no recente metrô, no antes remoto Jaçanã. Quando não há esta indicação, a lembrança de outras composições, a atmosfera lírica cheia de espaço que é a de Adoniran, nos fazem sentir por onde se perdeu Inês ou onde o desastrado Papai Noel da chaminé estreita foi comprar Bala Mistura: nalgum lugar de São Paulo. Sem falar que o único poema em italiano deste disco nos põe no seu âmago, sem necessidade de localização.

Com os seus firmes 65 anos de magro, Adoniran é o homem da São Paulo entre as duas guerras, se prolongando na que surgiu como jibóia fuliginosa dos vales e morros para devorá-la. Lírico e sarcástico, malicioso e logo emocionado, com o encanto insinuante da sua anti-voz rouca, o chapeuzinho de aba quebrada sobre a permanência do laço de borboleta dos outros tempos, ele é a voz da Cidade. Talvez a borboleta seja mágica; talvez seja a mariposa que senta no prato das lâmpadas e se transforma na carne noturna das mulheres perdidas. Talvez João Rubinato não exista, porque quem existe é o mágico Adoniran Barbosa, vindo dos carreadores de café para inventar no plano da arte a permanência da sua cidade e depois fugir, com ela e conosco, para a terra da poesia, ao apito fantasmal do trenzinho perdido da Cantareira." (Antonio Candido, 1975)