sexta-feira, 6 de novembro de 2009

DO PORTO AO BOTEQUIM - UM CHAMADO AO BOM COMBATE

Copiei, porque não poderia dizer melhor,de:

www.hisbrasileiras.blogspot.com
BLOG DE Luiz Antonio Simas

"terça-feira, 3 de novembro de 2009
DO PORTO AO BOTEQUIM - UM CHAMADO AO BOM COMBATE

Ando cabreiro com algumas coisas que estão acontecendo nas ruas cariocas. Aqui perto de casa, por exemplo, as notícias não são das melhores. Um botequim que costumo frequentar, o Bar do Chico, inventou uma reforma meio mandrake, que incluiu pizza no cardápio, visual moderninho, garçom de gravata e, é claro, aumento dos preços dos produtos. Botequim, já não é mais. Periga virar um playground de bêbados com rodízio de pizza depois das seis da tarde.
A reforma da Zona Portuária do Rio de Janeiro também está começando a cheirar mal [sinto um futum de bota-abaixo no ar, com o espectro do Pereira Passos circundando a Guanabara]. Os projetos que vi até agora parecem querer transformar a velha Praça Mauá numa mistura entre dois monstrengos desalmados: Puerto Madero, na Argentina, e a falecida Lapa, aqui mesmo.

Puerto Madero é quase a Barra da Tijuca platina - uma área com ambientes contemporâneos [seja lá o que for esse diabo], com uma concepção de assepsia urbana que abriga restaurantes caros, decorados de formas mequetrefes e cheios de novos ricos. Uma reforma sem caráter, eis o que me pareceu. Duvido que o fantasma de Carlos Gardel caminhe naquelas plagas.

A Lapa, por sua vez, agoniza. Virou valhacouto de adultescentes, simulacro de berço do samba, com bares que vendem bebidas por preços proibitivos e que visualmente lembram a lanchonete da entrada do Memorial do Carmo, no cemitério vertical do Caju - um lugar mais digno para se beber, diga-se.

O Nova Capela [cada vez mais Nova e menos Capela ] hoje é atração turística para uns basbaques que encaram uma ida ao velho bar como uma espécie de safari no Quênia e saem dizendo que foi uma experiência inesquecível. O Bar Brasil resiste com bravura, mas até quando?

Eu quero saber o seguinte: O poder público está escutandoos moradores da Zona Portuária? A ideia é fazer da Praça Mauá um centro financeiro que mande pro lixo a história fabulosa da região? Que venha a revitalização, mas revitalizar é criar um um marco zero de gosto duvidoso, com mais de cinquenta andares, ou recuperar a grandeza da tradição e da memória do cais e de sua gente?

Como estou encafifado com esses troços, reli dia desses um arrazoado que escrevi faz tempo sobre a agonia dos nossos botequins de fé e a necessidade quase quixotesca de se lutar pela preservação de um certo modo de vivenciar a cidade e o bar. São aquelas reflexões que, em boa parte, retomo nesse texto.

Faço isso porque esse combate me parece mais urgente do que nunca. As reformas na região do porto, misturadas ao balacobaco das obras para preparar a cidade para as Olimpíadas de 2016, me fazem ficar com um olho no cavalo, que é bonito, e outro na bosta do bicho, que fede pácas.

Vivemos, e isso não é novidade alguma, tempos de uniformização dos costumes, fruto deste tal de mundo globalizado. Em cada canto desse mundaréu, ligado por redes transnacionais de telecomunicações, as pessoas assistem aos mesmos filmes, vestem as mesmas roupas, ouvem as mesmas músicas, falam o mesmo idioma, cultuam os mesmos ídolos e se comunicam em cento e quarenta toques virtuais.

Nessa espécie de culto profano, em que a vida cotidiana é regida pelos rituais em louvor ao mercado que não é o de Madureira, o bicho pega e as ideias morrem, como outro dia morreu de morte matada o acento em ideia, sem choro nem vela e sem a dignidade de um samba do Noel.


Eu, que trabalho com adolescentes e adultos jovens, percebo que as crenças e projeções de futuro da rapaziada foram substituídas pelo pânico cotidiano - do assalto e das doenças, no âmbito pessoal, às catastrofes ambientais, na esfera coletiva. Cria-se uma lógica perversa : Como posso morrer de bala perdida, pegar gripe suína ou sucumbir ao aquecimento global, preciso viver intensamente o dia de hoje.

Ocorre que essa valorização extremada do tempo presente é acompanhada pela morte das utopias coletivas de projeção do futuro. Não há mais futuro a ser planejado. Somos guiados pelos ritos do mercado e abandonamos o mundo do pensamento, onde se projetam perspectivas e são moldadas as diferenças.
Restam hoje, talvez, duas tristes utopias individuais, em meio ao fracasso dos sonhos coletivos - a de que seremos capazes de consumir o produto tal, cheio de salamaleques, e a de que poderemos ter o corpo perfeito.


Transformam-se , nesse tempos depressivos, os shoppings centers e as acadêmias de ginástica nos espaços de exercício dessas utopias tortas, onde podemos comprar produtos e moldar o corpo aos padrões da cultura contemporânea - o corpo-máquina dos atletas ou o corpo-esquálido das modelos. É a procura da felicidade que não tem, como na esquecida e sábia canção natalina. E tome de caixinhas de Prozac no sapatinho na janela.


É aí, e eu queria falar disso desde o início, que localizo na minha cidade de São Sebastião o espaço de resistência a esses padrões uniformes do mundo global - o botequim. Ele, o velho buteco, o pé-sujo, é a ágora carioca. O botequim é o país onde não há grifes, não há o corpo-máquina, o corpo-em-si-mesmo, a vitrine, o mercado pairando como um deus a exigir que se cumpram seus rituais.


O buteco é a casa do mal gosto, do disforme, do arroto, da barriga indecente, da grosseria, do afeto, da gentileza, da proximidade, do debate, da exposição das fraquezas, da dor de corno, da festa do novo amor, da comemoração do gol, do exercício, enfim, de uma forma de cidadania muito peculiar. É a República de fato dos homens comuns - cenário não habitado pelos personagens de novelas do Manoel Carlos.

É nessa perspectiva que vejo a luta pela preservação da cultura do buteco como algo com uma dimensão muito mais ampla que o simples exercício de combate aos bares de grife que , como praga, pululam pela cidade e se espalham como metástase urbana.


A luta pelo buteco é a possibilidade de manter viva a crença na praça popular, espaço de geração de ideias e utopias - sem viadagens intelectuais, mas fundadas na sabedoria dos que têm pouco e precisam inventar a vida - que possam nos regenerar da falência de uma (des)humanidade que limita-se a sonhar com o tênis novo e o corpo moldado, não como conquista da saúde, mas como simples egolatria incrementada com bombas e anabolizantes cavalares.

O botequim é, portanto, e não abro mão do hífen, o anti-shopping center, a anti-globalização, a recusa mais veemente ao corpo-máquina dos atletas olímpicos ou ao corpo pau-de-virar tripa das anoréxicas - corpos que se confundem na doença comum desse mundo desencantado: Metáforas da morte.


Ali, no velho buteco, entre garrafas vazias, chinelos de dedo, copos americanos, pratos feitos e petiscos gordurosos, no mar de barrigas indecentes, onde São Jorge é o protetor e mercado é só a feira da esquina, a vida resiste aos desmandos da uniformização e o Homem é restituído ao que há de mais valente e humano na sua trajetória - a capacidade de sonhar seus delírios, festejar e afogar suas dores nas ampolas geladas feito cu de foca. É onde a alma da cidade grita a resistência : Laroiê !

Esse combate, amigos, é muito mais significativo do que imaginam os arautos modernosos e seus programadores visuais.

Botequim tem alma, é entidade, feito os trapiches e sobrados do cais do porto em noite de lua cheia.

Abraços"

Postado por Luiz Antonio Simas às 14:35

3 comentários:

  1. Uma delícia esse texto do Simas, o vingador!

    Márcia, obrigado por nos seguir no Passavante! Muito boa esta idéia de uma morada virtual para músicos. Foi prazer conhecer.

    Beijo, Claudio Renato

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  2. Olá, como esse é um espaço público-privado, vou compartilhar minhas impressões sobre o texto que, espero, não sejam puramente subjetivas. Em primeiro lugar, o texto é realmente sedutor. Alguns trechos são primorosos, como o que chama o boteco de "a casa do mau-gosto". Seria até mesmo o caso de nos perguntarmos se alguma vez o boteco já fora tão belo, se a aura das coisas que morrem não venha acaso lhe coroar a existência agora que o prozac de Manoel Carlos substituiu as fugidas depois do expediente. O que me pergunto, e aqui vai minha primeira chatice crítica, é se o botequim pode ser usado como algo além de estandarte decadentista, em outras palavras, qual o seu potencial utópico. Vamos a ele: O botequim é espaço privilegiado na produção cultural brasileira desde o romantismo mineiro, seria tedioso citar quantas páginas já lhe foram dedicadas. Um afrouxamento das tensões é sua marca registrada: no botequim posso ter uma pança indecente, posso chorar pela ingrata que me traiu, posso ser indecente e cultivar pequenos vícios. Posso, para além disso, cultivar o grande mal, o avesso do progresso, essa verdadeira musa dos boêmios que é a preguiça.
    O gozo da preguiça, eis a utopia dos frequentadores dos botecos. A preguiça do boteco, contudo, não responde mais às contradições do mundo exterior. Pois o mundo da globalização, das modelos anoréxicas e das novelas da Rede Globo é também o mundo em que a violência e barbárie nunca foram tão presentes. A isso o botequim republicano não pode responder, nem mesmo como paliativo. O noticiário fascistóide e o tecnocrata administrativo, de mãos dadas, dão respostas para esses problemas. Respostas que são ideologia em seu mais puro estado: mentira aplicada a porrete. Diante de tal estado de coisas também me sinto tentado a procurar um refúgio de autenticidade. Contudo, desconfio de que o botequim, com sua permissividade e sua lassidão republicanas, possa representar ainda uma resposta para uma sociedade na qual, vejam só, o próprio "gozo" é exaltado. Mais até do que exaltado, exigido, eu diria. Mas isso é assunto pra gente mais competente do que eu. Pra resumir, diria que o texto ganha quando compõe o quadro nostálgico de uma promessa não cumprida, mas perde quando supõe que essa seja melhor forma de resistência a um tempo que já não o comporta mais.

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  3. Cronópio,
    seu comentário sem dúvida propõe uma leitura mais apurada do texto do Simas.Texto realmente sedutor assim como é sedutora a procura de refúgios para o exercício de uma autenticidade questionável.Levando-se em consideração que o texto parte de um cidadão carioca que ainda passeia pela arquitetura nem republicana mas imperial, compreende-se o apêlo saudosista.No entanto vejo neste texto uma reação aos movimentos fascistóides que hoje invadem, por exemplo, o bairro da Lapa. Há muito que a população da baixada fluminense e das favelas cariocas se afastou dos butecos da zona sul, hoje frequentados inclusive pela "viadagem intelectualizada", como diz o Simas.Não posso deixar de me lembrar de um certo momento da década de 80 em que entrei num antigo buteco da Vila Madalena e não me reconhecí entre os frequentadores. Percebí a diferença que há entre frequentadores e consumidores. Uns procuram o bar como ponto de encontro, território de exposição de opiniões e conversas que se tornam mais descontraídas e que, sob o estímulo de umas tantas cervejas e torresmões, acabam por promover uma espécie de catarse, de "jogar conversa fora",de uma aparente inutilidade. Outros, os consumidores, alí estão com uma função definida, sob o controle do "bom comportamento" sem excessos, não se bebe demais, não se fuma, assistem à TV e consomem porções de "coisinhas saudáveis" e, é claro, praticam uma certa permissividade sexual a meu ver deplorável. Há pouco tempo atrás era risível o fato de alguém entrar num buteco e pedir um suco de laranja sem gêlo e sem açucar, ou um guaraná com uma fatia de laranja. Não creio, de fato, que o buteco responda à proposta de "resistência", muito bem colocada por você no "quadro nostálgico de uma promessa não cumprida", porém a procura por espaços que comportem outras manifestações que se diferenciem do modêlo Manoel Carlos ainda é um apêlo à existência de um homem que acha no descontrôle, no ridículo, no grotesco a possibilidade de outras respostas. Mas essa nostalgia do personagem descomprometido foi muito bem lembrada por Noel Rosa num samba: "Rapaz folgado" em resposta a Wilson Batista ("Lenço no pescoço", uma ode à malandragem).A crítica a essa imagem do "malandro de tamanco" que acaba por se acomodar na marginalidade: "Deixa de arrastar o seu tamanco/pois tamanco nunca foi sandália/ Tira do pescoço o lenço branco/compra sapato e gravata/Joga fora essa navalha que te atrapalha". Tempos de consciência, concordo.

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