sábado, 7 de fevereiro de 2009

Capacitação

Com o perdão da palavra, essa palavra não merece perdão. Os processos amplamente utilizados sob essa denominação pressupõem a atribuição e ampliação de conteúdos necessários ao exercício de certas atividades. Não querendo fugir ao nosso tema, pretendo tecer algumas considerações sobre a aplicação dessa modalidade de treinamento no campo da educação artística e musical, mais específicamente nos chamados "Projetos de inclusão social através da arte". Em primeiro lugar, nesse contexto o conceito de inclusão já é bastante questionável e vago. Parte do pressuposto de que os excluídos estão fora de algo ou de algum lugar onde supostamente deveriam estar e que não estão porque lhes falta outro algo que os incluídos têm e que, se transmitido os tornará também, enfim, incluídos. Outro pressuposto é o de que os primeiros desejam veementemente pertencer ao segundo grupo. De forma didática a teoria dos conjuntos é clara a esse respeito quando nos expõe áreas de intersecção entre diferentes agrupamentos. Definidas as características de cada um procede-se a determinação de critérios que podem ser , por exemplo, os de identificação de semelhanças. Esta área de intersecção pode formar um novo conjunto. Diriam alguns que essa clareza matemática não é adequada a uma prática humanizada de atuação em comunidades carentes. Ocorre que não são poucos os projetos que recorrem à matemática, porém apenas nos quesitos da estatística e da visibilidade. A partir de uma postura salvacionista e atribuindo à arte um não sei quê de magia e sedução, eu diria até de profilaxia , pretendem transformar o mundo, aquele mundo mau dos excluídos, no mundo bom (melhor) através do ensino da arte (a sua, a verdadeira) aos excluídos (imput, output, insider, outsider, impossível não fazer o link...). A propósito, graças à intervenção do Governo Federal no que diz respeito à liberação de verbas algumas ONGs só muito recentemente estão adotando o regime contratual pela CLT, incluindo seus funcionários na categoria de trabalhadores. Este tema será desenvolvido em um futuro tópico e cabe aqui como introdução ao nosso assunto.
Voltemos então à Capacitação. Desde que inventaram a Ong, eu estava lá. Participei de inúmeros projetos inventados por instituições dessa natureza. Portanto minha experiência me capacita, por assim dizer, à uma ampla discussão sobre o assunto.
Os cursos de capacitação (e em alguns casos também os processos de seleção) promovidos por essas instituições chegam a ser constrangedores. Na tentativa de aliar ao ensino das artes uma preocupação social e promover a integração entre funcionários aplicam aos participantes técnicas e dinâmicas de grupo que passeiam entre a afirmação de princípios básicos judaico-cristãos de convivência e as mais recentes versões do "yes, we can! ". Uma dessas técnicas à qual fui recente apresentada chama-se "Jogos cooperativos". Sem o menor constrangimento nosso instrutor nos informou que alguns dos exercícios eram aplicados em setores e empresas com o objetivo de aumentar a produtividade. A partir daí , numa clara adaptação de modêlos norte- americanos à realidade tupiniquim passamos a representar coreografias e a recitar quadrinhas assim como: "Eu vou bem, eu vou bem, e você vai bem também! Legal, legal, legal..." e etc. Outra técnica à qual fui submetida em outra instituição, e nesse caso era um processo de seleção, pedia que preenchêssemos um desenho muito precário onde havia uma figura humana com uma mala e um balãozinho. Na mala deveríamos escrever o que carregamos e não desejamos, no balãozinho o nosso ideal. Não passei.
Chego a pensar se realmente pretendem mudar o mundo utilizando essa série de bobagens. Parece que o mundo já mudou, e pra pior pois, como compreender que educadores, sejam eles graduados ou não, admitam que esse tipo de atividade esteja realmente acrescentando alguma coisa de substancial ao seu conhecimento? Pelo menos é o que afirmam. Parece certo que um abismo de enormes proporções verticais e horizontais vem se ampliando para nos mostrar o quanto os incluídos estão afastados dos excluídos. E nesse processo, ainda que declarações dessa natureza tendam a me colocar ràpidamente no segundo grupo, devemos nos recusar a participar dessas práticas inomináveis se não quisermos colocar em risco a integridade do nosso próprio conhecimento.

5 comentários:

  1. Gostei muito da início do texto. De fato, a relação entre exclusão e inclusão me parece ser de dialético, já que a própria constituição dos conceitos demonstra como cada um deles necessita de seu oposto. Seu texto foi primoroso nesse aspecto, eu diria até que hegeliano. Pois é Hegel quem dizia que para conhecer o verdadeiro é preciso conhecer também o falso e que, além de não destruir o seu oposto, o termo que o contradiz é necessário ao seu conhceimento.
    Contudo, o que seu texto esbanjou no primeiro parágrafo - quando tratou inclusive da teoria dos conjuntos - parece ter faltado no momento em que suas reflexões trataram duma atribuição, à carte, de 'um não sei quê` de mágico e sedutor. Parece-me importante ressaltar que as relações poentre forma artística e conteúdo social também possuem caráter dialético. Tampouco julgo oportuno descartar o papel de `formação` que a arte pode exercer. Resta saber que tipo de mutilação foi imposta ao conceito de arte para que ele coubesse num curso de capacitação como esse, que visa a preparação de um exército de autômatos destinado a marchar culturalmente sobre os excluídos.

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  2. Bem, falando mais rasteiramente, eu diria que o conceito de capacitação, quando aplicado a seres humanos soa meio dissonante, não sei.
    Mas, supondo que o treinamento de pessoas para exercer certas atividades mereça este nome, capacitação, como aliar esse conceito ao exercício da arte?
    Estamos falando da "capacitação" dos "excluídos" ou dos adestradores/professores?
    Se nos referimos aos professores, eu diria que a preocupação é bem válida, (na teoria, pelo menos) pois é comum vê-los atendendo aos jovens, como quem faz caridade. Super envolvidos. Absortos em sua tarefa judaico-cristã de fazer o "bem" ao próximo. Não enxergando ali, a perpetuação dessa exclusão. Não repensando suas metodologias; ignorando a herança cultural desses jovens; impondo-lhes sua cultura e seus gostos pessoais como se ETs chegassem na terra e afirmassem que não sabemos nada e que "Música" de verdade é aquilo de que eles gostam!
    Pior ainda, se aplicarmos o termo capacitação para o ensino de arte aos jovens em situação de "risco social", pois aí temos uma falácia absolutamente gritante:
    O convívio com a diversidade musical, o acesso a instrumentos musicais diversos, o mínimo contato com a linguagem musical tem como finalidade oferecer uma profissão a esses jovens?
    Seria como se professores de literatura do ensino regular instigassem seus alunos a pretender serem todos, escritores em busca de um "Best Seller"...
    Acredito que o acesso à linguagem musical seja um direito de todo ser humano. Identificar as notas musicais não deveria ser diferente de saber o nome das cores. Usufruir do imenso patrimônio cultural da humanidade, deixado como herança pelos grandes de todos os tempos, é um direito inalienável. Faz de cada ser humano, um ser humano mais humano. Essa deveria ser a finalidade de quem ensina música.

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  3. Olá Monahyr! Obrigada pelo comentário, bastante pertinente, aliás. Vamos continuar um pouco mais nesse tema. Acho que merece...Abraços!

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  4. Olá Cronópio! Muito obrigada pelos seus comentários, que sempre ampliam epropõem um aprofundamento das questões abordadas. Só mesmo você para me tentar à ousadia de ler Hegel!Ufa!

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  5. Além de inclusão e exclusão acrescentaria a palavra decentralização, muito usado nas "políticas" de capacitação cultural.
    Parabéns pelo texto!
    Marco Araujo

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